Sunday, October 26, 2008

Retrato de alguém como nós (II)

Primeira PARTE


Abandonou o bar e continuou sossegadamente pela rua, com a mão ensanguentada. Colar sorria, inspirava o ar fresco da noite ainda com resquícios de fumo dos carros do final da noite. A cabeça dele era como um vazio onde só apenas a imagem das estátuas no bar a preenchia. Humanos que ficam estagnados, que ficam sem pensar, sem se mover, de olhos arregalados, boca aberta, garganta inchada e tão estúpidos quanto um galinha.
Dava-lhe vontade de rir tudo isto, e mais vontade daria se visse que no bar ainda nenhuma reacção ao homicídio tinha sido tomada, ainda tudo estava na mesma, nem um dedo tinha mudado de posição, nem uma gota de suor se tinha mexido ou se libertado das entranhas da merda humana. O corpo tombado sobre o balcão dava um requinte a todo aquele encanto da morte despropositado, selvagem, desconexa, aquela morte que ao fim ao cabo nem morte nem homicídio foi. Não havia qualquer intenção inerente aquilo, nem uma vontade mínima de ver se o vidro realmente cortava pele humano, apenas uma necessidade de comprovar que se encontrava vivo. Colar já nada era. Era apenas um solar que deambulava cumpria horários de todo o tipo a sua vida não era vida era tempo, era controlo, era rigidez, o inverso do que aquilo com que sonhara na sua juventude. E foi a cara do velho ao balcão e o sangue a escorrer-lhe pela mão que o fez vibrar novamente com a vida, e não com a morte.

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Acabara de arrumar a mala, a sua cidade era perto da fronteira, era a cidade de Alcab, do país de Nopu. Um país pequeno com uma imensa costa fazendo apenas fronteira com outro, a Ronia. A sua ideia era atravessar a fronteira a pé, não lhe apetecia ir já para a prisão agora que descobrira a vida. Decidiu mandar-se na incerteza, de atirar-se para uma vida em que não há o controlo do tempo, decidiu explorar aquilo que perdera.
Depois de feita a mala apenas com o necessário saiu porta fora, inspirou mais uma vez o ar e saiu em direcção a Ronia que a pé deveria ficar a umas duas horas e meia.

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No bar a polícia tinha acabado de ser chamada por um transeunte que ia no passeio. Quando chegou ao local uma onda mista de pânico, estranheza, surrealismo e loucura apoderara-se deles. As até então estátuas transformaram-se em macacos, pulando de mesa em mesa, rindo que nem hienas badalhocas e covardes do morto em cima da mesa.
Quando se aperceberam que tinham companhia começaram-se a aproximar com uma cara de curiosidade dos dois agentes da polícia. Ao se aperceberam que eram da mesma espécie, começaram a enroscar-se a eles e a deitarem-se no chão. Estavam cansados depois de tanta gritaria, a polícia sem saber o que fazer telefonou a pedir uma carrinha para os apreender e levar para um hospital psiquiátrico.

Pano para tirar a panela do fogão

As cores soltaram-se
caíram esbarrando num chão imenso,
tentei apanhá-las antes do embate
Mas em vão.

Monocromático, tudo monocromático!
Até o bater do coração se tornou monocromático,
As palavras passaram a ser preto e branco.

O sorriso estampado na minha cara,
Nada era, apenas um preto e um branco,

O vazio de cores de ideias encheu-me a cabeça,
A estupidez e a anomalia libertina foderam-me por trás.
Estava possuído e excitado analmente pela heroína da palhaçada!

Fiquei sem nexo, sem sentido, embasbacado e penetrado,
Mas depois do climax as cores reapareceram,
Mais baças, mais frias que nunca, e como que num Inverno
Senti-me isolado e rodeado pelo frio.


Fora abandonado depois de uma penetração.


André Ventura
26 de Outubro de 2008

( Iasi - Roménia)

Monday, September 08, 2008

O Anjo que nunca fodeu

Vejo o fogo,
As asas e os pés,
A auréola e os cornos espetados em mim.


A boda de prata dos 5 meses,
O divórcio de um noivado que não se cumpriu,
De uma lealdade sem regras.


Deixara-me andar assim à deriva,
Deixei-me perder assim no mar,
Quis ter auréola e aguentar os cornos.


Quis ter auréola quando já me encontrava no inferno.

As chamas que consumiam todo o meu corpo de papel,
Todo o meu corpo-brinquedo.

Peço mais um copo, e sem querer parte-se.
Tomba-se no meu corpo de papel, e lá fico como um anjo que nunca fodeu.

Tuesday, June 03, 2008

Turvado

Que bom banhar-me em águas lamacentas,
Turvas,

Lixiviadas,
Obsoletas e a cheirar a merda.

Quanto mais se rasteja mais se quer rastejar,
Cada vez menor será a queda,
E eu continuo a rastejar
Cada vez com mais paixão.

Continuo com as norsas dos dedos em carne viva,
Delicio o chão imundo com a lingua já toda rasgada
De tanto corte.

Rastejo e cada vez gosto mais,
Mas muitas vezes gostaria de ver o céu mais perto,
Mas como muitos homens vivem numa sociedade que lhes enoja,
Eu rastejo nesta vida castanha e pestilenta,
Até que o céu se aproxime um bocadinho mais.



André Ventura
(4/06/2008)

Sunday, April 27, 2008

cabembromtronçaco

Por entre os ramos
Fui perseguindo-te, rosto sem cabeça.
corpo sem tronco,
mãos sem membro.

Mas a lógica muitas vezes é traiçoeira,
E quem sou eu para questionar a tua existência?

Desfaço-me em pedaços com cabeça, tronco e membros.
Tu continuas fugidia
Sem cabeça, tronco e membros.




!!
DESMEMBREM-SE
!!

Monday, January 07, 2008

Retrato de alguém como nós




Passaram-se 5 meses depois da última carta. Um ano depois do desfecho de todo aquele sonho, o jovem Colar estava sentado a ver mais um daqueles programas desinformativos, a comer bolachas mais que torradas do LIDL e a beber um sumo concentrado de morango cheio de corantes e conservantes. A sala até estava bem decorada tendo em conta o mau gosta dos móveis daquela casa alugada. Móveis com flores indecifráveis detalhados pela sua madeira castanho-falso, a única coisa que dava vida eram uns panos coloridos e uma cadeira do IKEA. Eram 6 da tarde e Colar desfrutava dos descanso merecido depois de um dia inteiro a arrastar os olhos por um computador das finanças. Colar era um fracasso, um dos muitos talentos perdidos, com o sonho da poesia e da escultura acabou nos números sem necessidade de grande esforço matemático. Perdido na vida, perdido na morte, perdido no trabalho, perdido no descanso, perdido no amor Colar era mais uma alma desalmada como tantas outras.

[O jovem Colar tinha 25 anos, cabelo castanho claro, cara triste e desmanchada pelas olheiras, olhos castanhos esverdeados encobertos pelo nevoeiro dos fumos consumidos há 10 minutos, calças russas (gastas de tanto uso), t-shirt vermelha]

A campainha toca, não de surpresa, antes pelo contrário, tinha à porta a sua dose de vida sexual necessária para sobreviver mais uma semana sem alguém permanentemente a seu lado que o satisfaça não só na arte do sexo. Naida, uma jovem de 20 anos vendedora de serviços libidinosos, entrava sem uma palavra, pousou o casaco na porta da cozinha e perguntou:
-Onde vai ser hoje?
-Pode ser aqui mesmo, na cozinha. Se não te importares.
Naida soltou um sorriso leve e ripostou:
-Desde que me pagues e não me peças fetiches demasiado obscenos por mim, tudo bem.
Naida ao ver nos olhos dele um fulgor a nascer retirou a roupa numa fracção de segundos, Colar seguiu-a na arte de desnudar pessoas. Foram de encontro um ao outro e, sem grande pormenor para descrever tiveram duas horas quentíssimas em chão geladíssimo.
-Então até terça querido! – com uma nota de 100euros despediu-se com um sorriso na cara, que nada demais dizia a não ser um obrigado escusado pelo pagamento.
Fisicamente exausto, mentalmente vazio, deitou-se sobre o seu sofá decorado com formas geométricas muito mal colocadas e coloridas. Pensava e não pensava, desde à 1 ano que decidiu pensar no que não interessa, dedicou-se a ler revistas de pesca, astrologia, humor seco, banda desenhada sem conteúdo e também algumas de bordados e culinária.
A hora do jantar entre amigos na pizzaria da sua rua chegara, amigos secos estes. Durante o jantar as conversas rodopiavam no eixo de temas relacionados com desassuntos de homens, aventuras com mulheres que não existem, trabalho que destrabalha a alma de uma pessoa e sobre, acima de tudo, sobre o tempo. Colar levantou-se no fim e foi pedir um whisky ao balcão. O copo nem de whisky era, feito de um vidro fino prestes a partir e ele apercebeu-se da sua fragilidade. Agarrou-o, apertou-o nas suas mãos até que este cedesse nesta luta desigual. Agarrou firmemente na base do copo e sem pensar em assuntos desinteressantes desferiu três golpes no velho homem velho sentado ao seu lado. Matou-o.
Olhou para empregada do balcão e perguntou:
- Não sei se mereceu mas veja lá, foi bem morto ou não!?
Pousou o dinheiro no balcão, olhou à sua volta e viu o que já não via à muito. Conseguiu com que todas as pessoas à sua volta se transformassem em estátuas, em esculturas e expressões que ele próprio idealizou. Gritou:
- Viva a arte do movimento cimentado! Ah Ah! Viva vocês! Camaradas imóveis!
Vestiu o casaco por cima da t-shirt vermelha e, cheio de orgulho saiu da pizzaria.

[Continua]


Fotografia: My Dinner With Andre by londonxpress